Quando a barbárie ultrapassa os limites aceitos pela sociedade, é comum que o autor seja rotulado como “monstro”. Esse rótulo funciona como uma forma de proteção: ao reconhecer que os atos mais cruéis são praticados por pessoas, fica difícil aceitar que esses indivíduos sejam, de fato, humanos como nós. Até os próprios detentos podem usar essa distinção para não se sentirem iguais aos demais presos.
Entre os casos que instigam essa divisão estão Roger Abdelmassih e Cristian Cravinhos.
O primeiro foi condenado por estuprar 37 mulheres, tendo recebido, em 2010, uma pena total de 278 anos, posteriormente reduzida para 181 anos. O segundo foi sentenciado a 38 anos por participar do assassinato do casal von Richthofen.
Ambos têm seus crimes relativizados — seja por si mesmos, seja por parte da opinião pública — e são retratados na série Tremembé, do Prime Video, que revisita casos reais com foco na convivência dos condenados na penitenciária. O Minha Série conversou com os atores que os interpretam e com os idealizadores da série. Veja a seguir:
Humanizar os criminosos sem romantizar
Tremembé já começa deixando evidente a frieza de Roger Abdelmassih. Anselmo Vasconcelos, intérprete do personagem, afirma que o roteiro, assinado por Ullisses Campbell e Vera Egito, foi fundamental para sua construção da figura.
“O texto dramatúrgico colocou a complexidade do Roger de forma muito centrada. Ele tenta escapar daquela prisão porque sente que vai morrer lá dentro, né? Então precisa, como todo ser vivo, sobreviver. A vida é uma luta pela sobrevivência. E o roteiro foi muito certeiro nessa busca; logo no primeiro episódio fica clara a perspectiva dele de estar ali lutando para não sucumbir à condenação. Uma coisa que acho interessante nesse roteiro é que o Dr. Roger não é um preso comum. Ele ficou conhecido primeiro porque repetiu o crime mais de 30 vezes”, comenta.
Na série, todos os personagens são apresentados de forma humana, o que, para Anselmo, não significa romantização, mas sim retratar pessoas reais e complexas. Ele cita Shakespeare como precursor dessa abordagem.
“Ele é confrontado por suas vítimas inclusive dentro da prisão. Há uma cena magnífica em que uma das vítimas o encontra e lhe diz várias coisas, e ele reage como se aquilo não estivesse acontecendo. Trata-se de um personagem com solidez shakespeariana. Shakespeare inventou a complexidade humana; antes dele, as narrativas eram mais unidimensionais. Em Tremembé, a realidade brutal é humanizada com acerto por Vera Egito. Humanizar não é romantizar. Humanizar é mostrar que o homem é capaz de uma crueldade, de uma virulência que nenhum outro aspecto traduz”, conclui o ator.
Casos cruéis demais para dividir opiniões
Todos os detentos retratados em Tremembé já foram julgados, ou seja: a justiça já se posicionou sobre eles. Por serem crimes de grande repercussão, a maior parte tem uma resposta pública bastante definida, mesmo quando não se faz um questionamento mais profundo. A roteirista Vera Egito tem consciência dessas leituras.
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“Há uma cena em que a personagem da Bianca (Camparato) diz: ‘Nossa, tem crime que não tem condição, né’, referindo-se a um crime realmente chocante da outra personagem, que você verá mais adiante. O personagem do Kelner, às vezes, escuta pessoas dizendo: ‘Ah, não, mas o Cristian (Cravinhos) foi manipulado’. Há quem tente relativizar, né? Ele mesmo tenta minimizar o que fez. E o Roger é realmente odiado por todo mundo, não tem jeito”.
Ullisses acrescentou: “Ele reclama de estar misturado com pessoas… Com monstros”.
Um homem manipulador, menos com seu irmão
O ator Kelner Macêdo, ao dar vida a Cristian Cravinhos, encara o desafio da ambiguidade do personagem. De um lado, um homem condenado por participar de um duplo homicídio; do outro, alguém capaz de tudo pelo irmão mais novo, Daniel.
“Acho que essa era a maior complexidade do Cristian: ele é bastante contraditório e manipula desejos e sentimentos. Inclusive mantém duas relações simultâneas, o que gera uma série de conflitos na narrativa. É alguém capaz de cometer esse crime e que justifica por amor. A relação com o irmão dentro da prisão é o que os mantém lá, é o suporte afetivo do Cristian com o Daniel, e vice-versa. Esse sentimento é verdadeiro. Os outros sentimentos ele manipula, mente, se aproveita. O Daniel, não: ele é um pilar real que o sustenta. E isso foi difícil de encontrar”, relata Macêdo.
A série explora muito as relações que se formam na prisão, com destaque para o “triângulo amoroso” entre Suzane von Richthofen, Elize Matsunaga e Sandrão. Cristian Cravinhos também se beneficiava dessas dinâmicas.
“Ele é um exibido, né? Se acha, está sempre em um jogo de sedução naquele espaço; sabe muito bem que está ali pagando por um crime. Ao mesmo tempo, quer sair, quer voltar à rua, viver. Na saída temporária, a primeira coisa que faz é, de fato, viver: um desejo novo, uma adrenalina, uma aventura. É um personagem cheio de contradições, e acho que esse foi o desafio de construir o Cristian: abarcar todas essas contradições”, acrescenta.
Para decifrar Cristian Cravinhos, Kelner se apoiou nas relações do personagem, entendendo-o por meio das outras pessoas e deixando seu próprio julgamento de lado. Ele conta que a estratégia foi “afastar ao máximo o meu julgamento pessoal. Foi dar uma limpada no Kelner e abrir espaço para que essas relações existissem com a importância que cada uma tinha”.
“Acredito que, ao se relacionar, a gente descobre quem realmente é. A gente se relaciona de modos diferentes com cada pessoa. Então existe um Cristian para cada relação. Isso também norteou minha construção”, conclui.
Tremembé tem 5 episódios, um dedicado a cada crime retratado, e já está disponível no Prime Video. Já assistiu à série? Comente nas redes do Minha Série! Estamos no Threads, Instagram, TikTok e até no WhatsApp. Venha acompanhar filmes e séries com a gente!




